segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Primeiras Tentativas Poéticas

O poeta Teofilo Tostes Daniel publicou seu primeiro livro, do qual fiz o texto da quarta capa, que segue abaixo.

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“Dentre os personagens presentes neste grande amálgama de pseudo-indivíduos, em meio à grande balbúrdia formada por este vozerio desencontrado, certamente me encontro eu, com a minha voz. (...) Este “eu”, sempre metonímico, revela-me como um personagem, uma persona a mais no meio de tantas outras; sem nome como as demais.”
(Teofilo Tostes Daniel -- Primeiras palavras (em prosa). Do livro "Poemas para serem encenados".)

O carioca Teofilo Tostes Daniel é este “eu”, lírico e teatral. Um tanto nômade, morando atualmente na cidade de São Paulo, o autor nos apresenta seu primeiro livro de poesias. Em ‘Poemas para serem encenados’, Theo (como é mais conhecido e chamado) deflagra um constante diálogo com as artes cênicas e faz de seus poemas uma grande dramaturgia, chegando mesmo a atingir um híbrido entre os gêneros lírico e dramático.

Trata-se de um livro que desnuda a volúvel personalidade da palavra e celebra o significado das primeiras tentativas (?) poéticas.

Ícaro Beranger, autor do blog ‘Um Dedo de Prosa Poética’ (http://www.icaroberanger.blogger.com.br/)
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Na época, meu blog do blogger ainda não havia desaparecido no limbo da internet. Os posts todos, anteriores a este, são do antigo Blog e foram aqui republicados. De agora em diante, virão coisas novas.

Sobre o livro, o autor avisa em seu Tabló[i]g:

Aqueles que quiserem podem encomendar o livro me enviando um email. Nele, basta dizer a quantidade de livros desejada e o endereço para envio. Cada exemplar custa R$ 20,00 mais as taxas de correio. O pagamento deverá ser feito por meio de reembolso postal. Antes de mandar o(s) exemplar(es), enviarei um email dizendo quanto ficará tudo e esperarei a confirmação de que posso enviar pelo correio a encomenda solicitada. Os pedidos podem ser feitos pelos emails teofilotostes@yahoo.com ou teofilotostes@gmail.com.

Poemas para serem encenados
Teofilo Tostes Daniel.
Casa do Novo Autor Editora: São Paulo, 2008.
76 páginas. R$ 20,00 + taxa dos correios.

Encomendas: enviar um email para teofilotostes@yahoo.com ou teofilotostes@gmail.com, com o endereço para envio e a quantidade desejada.



Leia abaixo alguns poemas do livro:


Primeiras Tentativas Poéticas

Duas rimas se encontram no caminho,
Se entreolham, se beijam... Bem no meio
De uma frase cochicham bem baixinho
Segredos já expostos ao passeio.

A linguagem humana forma um ninho
Que sempre expõe ao público recreio
As demonstrações várias de carinho
Das palavras e idéias que eu anseio.

O verbo, ao espalhar apoteoses,
Manifesta-se ávido aos ferozes
Olhos daqueles tidos por poetas.

A minha sina foi-me revelada:
Com versos devo andar por uma estrada;
Poesias devem ser as minhas metas.



Genealógico

Sou filho dos burgos
mas não sou burguês.
Meus cantos são lusos,
não sou português.

Meu povo me aponta
safaris no corpo,
contrastes, afrontas
e um velho índio morto.

Entre hóstias e hostes
cravaram-me um Tostes
de algum povo ao léu.

Fugindo com fome,
meu último nome
chamou Daniel.



O poema de hoje

Tua presença fez-se em minha mente;
Rompeu, inexorável, a barreira
Que arquitetara para que o afluente
De mim não desaguasse em cachoeira.

Meu olhar te mirara descontente
Porquanto te encontrou, bem verdadeira,
Negando um parco olhar a mim, doente,
Que, aflito, te buscara à Terra inteira.

Lugentes olhos cercam teu olhar;
Constantes eles são ao reclamar
A migalha do céu que tu ofertas.

Desisto vagamente de utopias,
De reter os risos que sorrias.
Eu sou daquelas almas já desertas.



Alice Através do Espelho
(ao Armazém Companhia de Teatro)

mote
Eu escrevo este poema
que me imortalizará
por um dia tê-la visto.

Ser o público e a cena
de seus sonhos me será
doce gozo que conquisto.

glosa
Em pensaventos lesmos e espelhares,
Alice alopra os alcalóides anos
nadinocentes, vivos, sempre insanos,
latentes como o brilho dos pulsares.

Volupiadas velhas, sorrateiras
aquecem a epiderme da menina,
da infante nada infântica que nina
os desejos matreiros das soleiras.

Nosso primeiro e estranho anfitrião,
Chapeluco Maleiro e já caduco,
pregado num relógio feito um cuco
ri o riso dos loucos com razão.

Tomo um xeque, um chá-mate e enfim adentro
no espelho-tobogã atrás de Alice,
alicerce dos sonhos, do que eu visse
neste mundo fantástico e epicentro.

Eu vejo um labirinto no armazém,
num impudico, lúdico vestido
em que, no olhar mais lúcido, elucido
todas transparessências que ele tem.

Um gato trapezista, num sorrir,
instaura nos sentidos todo absurdo
comportável no meu sentir já surdo,
pois os seus lábios deixam o rosto ir!

No tabuleiro, a injusticeira manda,
a Rainha das copas e das taras.
Ela corta cabeças pouco caras
nas horas que a demência faz-se branda.

No justíbulo faz-se o julgamento
que desnuda as segundas intenções.
No júri vejo os condes e os barões
feitos nobres num doido desmomento.

No final desta noite ou deste dia,
saciado de amor, eu durmo cedo
neste hospício que espalha todo o medo
da certeza que o mundo o imitaria.

(Aplausos!)

domingo, 28 de dezembro de 2008

Sorriso sem Camuflagem

"Seja como for, recriar a vida também é vivê-la (...)"
(APC, num comentário em seu próprio blog)

(para APC e Helena Sofia)


APC -- foto retirada do blog Camuflagens (http://www.camuflagens.blogspot.com/)Das dores, extraio o espanto filosófico. Dos sabores, extraio o encanto de um sorriso, mesmo indiviso, velado, camuflado; deflagrado ou não. E gozo a alegria sem temer as conseqüências do abismo, pois o que resta nas frestas da gente é memória, é história, é a glória da vida. Ao que me convida a minha asa não renuncio por temer o chão. Porque na finitude do não me engendro, me arquiteto, me poeto.

Há tantas formas de felicidade quantos sorrisos que nos cabem no rosto. Mesmo entre orvalhos noturnos, saudades, o gosto de uma alegria sói nos visitar. Mesmo se soturnos os baralhos do acaso, mesmo entre o que dói, não há descaso com o riso. E as alegrias atravessam oceanos, como a poesia vence o tempo e combate os anos, laureando alguns com a imortalidade.

Duas luzes serenas, alegrias amenas, tenras e ternas, venceram um Atlântico para me chegar. Duas lusitanas mensagens vieram fazer festa em minhas íntimas paisagens. Ambas são alegrias moldadas na chama das letras, letras que vieram de Lisboa me alcançar. Uma me veio por meio de uma moça incógnita, cujo nome suponho, mas aqui não exponho por não saber se eu soube adivinhar. A outra alegria que me coube, veio-me por meio da carta de uma outra moça, que sabe a incógnita por trás de meu nome. Numa amizade antiga ou iminente, a felicidade premente não é miragem. Por isso sorrio. Sou rio, heraclitianamente. E tenho sorriso sem camuflagem...

(Escrito de alegria em agradecimento à homenagem que recebi de APC em seu blog Camuflagens (http://www.camuflagens.blogspot.com/) e à carta que recebi de minha amiga Helena Sofia.)


Publicado no dia 28 de agosto de 2006 em
http://www.icaroberanger.blogger.com.br/.

Amor, me chama...

"E me beija com calma e fundo
Até minh'alma se sentir beijada"
(O meu amor -- Chico Buarque de Hollanda)

(p'ra ti, meu amor)

Eros & Psiqué



Quero repousar minha vida sobre teus seios, teus meios, teus entremeios. E me derreter inteiro sobre teu corpo, sobre teu cheiro morno de paixão. Meu coração salta com teus beijos. E tu sabes bem os desejos do meu beijar, do meu tocar, do meu amar...

A poesia dos nossos corpos deve repetir a das nossas almas. Numa pressa toda calma que é afã. É manhã. És manhã (com o adjetivo só teu e meu) em mim. És meu jardim de delícias, de carícias, de malícias. A música que mais gosto de cantar. Eu, que aprendi da música que devo te amar devagar e urgentemente, te amo mais. Eu te amo sem enquanto, só presente. Eu te amo tanto, tanto, tanto!

Depois de espasmos, orgasmos; depois de o cosmo revirar, quero olhar nos teus olhos e me encontrar na tua ternura. Na tua candura. No formato exato de teu rosto, de teu gosto. Quero teu sorriso escancarando as minhas janelas, as minhas tramelas despregadas no chão. Quero tua mão na minha, pois neste compasso caminha meu coração.

Quero tuas costas nuas, quero caminhar por tuas ruas e te esculpir com minhas mãos. Assim, recomeçamos um amor que não tem fim, um torpor que é sempre assim: só amar. E o que pode o homem senão conjugar este verbo transitivo direto e buscar o objeto que ele pede, necessita, ordena?

Um amor não se condena. Por isso, meu coração se acelera quando, entre a espera e a delícia, escuta: "Amor, me chama de tua puta"!

Cena do filme 'O Búfalo da Noite'
Eros & Psiqué

Publicado no dia 30 de julho de 2006 em
http://www.icaroberanger.blogger.com.br/.

sábado, 27 de dezembro de 2008

Sons contemporâneos de uma alma barroca

"Dáme fe, dáme alas,
dáme fuerza
para sobrevivir
en este mundo."
(Fe -- Maná)

Para Tatiana Mendes de Souza

Olhos garços e barrocos -- Tatiana Mendes de Souza


Tenho impressão de ouvir tua alma, quando o som de um maná me ensalma os ouvidos. Um maná de contornos profanos, ritmo dissoluto. Um maná contemporâneo, perdido como todos nós num mundo sem absolutos nem fundamentos. Um maná que é sustento sonoro para devaneios, para passeios sobre a eternidade das águas.

Tenho impressão de que esta música mestiça, que atiça todas as primitivas danças do corpo, exala tua sensualidade. Talvez seja pelo encontro com tua alma barroca, louca dualidade de quereres e sensações. Talvez por conjunções astrológicas, pela lógica conflituosa do céu e do mundo, dos teus olhos garços e do teu corpo que é rosa branca e lua desejante.

Tenho impressão de ser delirante toda essa atmosfera sonora de cais e loucura. Porque há uma aurora em cada procura, uma dualidade em cada fé. Porque o homem é um ser que procura a verdade e vive do que não é...


Publicado no dia 06 de julho de 2006 em
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sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

A Alma de um Poeta

Para Heloísa Dias Gramari

Cena de 'B, Encontros com Caio Fernando Abreu'


A alma de um poeta precisa de alimento, precisa da ração diária de lirismo e contemplação, momentos de ascese contra o abismo da maquinação desumana.

Precisa da flor, mesmo a insana que brota no asfalto, se não fica falto de cor. Assim como precisa de ar seu corpo, precisa de poesia sua alma. Precisa da calma contemplativa para digerir o instante que vem, para pegar o trem da fantasia.

A alma de um poeta também precisa ser orvalhada, precisa espalhar por páginas toadas de sons e lágrimas. Nefelibatas não desconhecem o valor da luta, nem o suor da labuta e do pão.

Precisa de risos e sorrisos um poeta. Precisa gargalhar até doer seu ventre, seu entre, e seu corpo todo ressonar o riso. Pois a alegria é elemento, é alimento vital à vida, à poesia, aos sentidos.

A alma de um poeta precisa da beleza. Ela é como a água na natureza. Acesa a candeia dos encantos, dos cantos, dos mantos, dos santos (quiçá), a indiferença é pecado. Mas minha crença não me permite crer que ante o belo haja ser que não se prostre nem se mostre extasiado.

Um poeta não precisa, no entanto, de muitas iguarias sobre a mesa de um palacete. Um verde nos olhos viçado e realçado na poesia de um riso amigo já lhe é um banquete...

Publicado no dia 11 de junho de 2006 em
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quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

Um olhar sobre os olhos

"Há certas coisas no mundo
que eu olho e fico surpreso:
uma nuvem carregada
se sustentar com o peso
e dentro de um bolo d'água
sair um corisco aceso."

O Espetáculo -- Cordel do Fogo Encantado
(album: O Palhaço do Circo sem Futuro)



Existem muitas formas de se ver. Existe o olhar que não se conforma, o que deforma, o que se põe a ascender... Candeias de nosso corpo, cadeias de sentimentos, tantas coisas são os olhos, tantos molhos destas chaves que abrem e sabem outros tantos peitos!

Podemos levar os olhos afeitos a tanta mudança, ter olhos de assassino ou de criança. Podemos ter olhos cansados ou conservá-los meninos. Podemos mesmo não ver quando olhamos, pois muitas vezes sequer enxergamos por tanto olhar.

Por fim, pode-se conservar nos olhos a surpresa, como quem represa a natureza do espanto. Para tanto, deve-se desatar o que se pesa nos olhos e untá-los com óleos da inocência que ainda não se desfez, para que se conserve a ciência de olhar o mundo pela primeira vez.



Publicado no dia 26 de novembro de 2005 em
http://www.icaroberanger.blogger.com.br/.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

Os Não-Lugares

Delacroix -- A Liberdade guiando o povo
Quando começamos a descrer de utopias? Quando nossas mentes tornam-se frias a elas? Quando ocorre a defenestração de nossos sonhos e nas janelas permanecem medonhos horizontes de chão sem fim?

É assim, um dia a gente deixa de lutar, de buscar, de sonhar, de acreditar na metamorfose do mundo! E o fundo sem fim da indiferença ronda, sonda e arromba nossas portas, nossos portos, nossas esperanças mortas e nossos passos tortos. Nesta hora, somos tijolos compondo o muro, seguro, da castração. Neste agora estamos no solo maldito e escuro da desilusão.

Não há utopias -- lugares dos sonhos -- pois a pragmática do mundo, nada estática, afundou fundo os dias dedicados a elas. Um solvente universal arremessou pelas janelas da alma os não-lugares para realizar a calma operação da venda de sonhos sem vida pela estabelecida valoração de um vil metal.

Edição com imagens do filme 'The Wall'

Publicado no dia 30 de setembro de 2005 em
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terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Dos Esquadros e dos Quadrantes de Gaia

pela janela do quarto
pela janela do carro
pela tela, pela janela
(quem é ela, quem é ela?)
eu vejo tudo enquadrado
remoto controle
(Esquadros - Adriana Calcanhoto)

Deixa eu encostar meus ouvidos no chão para tentar sentir a pulsação da Terra. Erra meu sentir, vagando por vagas, adagas e adegas! Erra o meu desejo, pois planejo ouvir uns passos tocando Gaia do outro lado da praia, no casco de uma cidade ignota, verdade rota às margens de um rio.

Já me enfastio, não do rio, mas das molduras que mo trazem. Meu mundo é quadrado, emoldurado em janelas, em quimeras, bestas-feras em mim. Meu mundo é colorido, é florido, mas não é quente. Por isso, quero colar meu ouvido no ventre de Gaia, cravar meus dentes no seu dentro, no seu centro, para ver se me queimo neste magma que teimo esvaziar em mim.

Meus jardins têm flores, têm cores, mas não odores. As pessoas são tecidas de palavras, são lavras de letras, mas não têm rostos, não têm pés e nem cabeças. Algumas são lembranças, outras distâncias, outras são promessas... Gaia são muitas peças num extático, fantástico quebra-cabeça errante.

Meus quadrantes, meus quadrados, esquadro-os nas janelas. Esqueço de pôr meus ouvidos no chão, até porque Gaia, nua, não está no chão nem está na rua... Aparece-me na tela. Tem a medida de meus quadros, meus aros, meus esquadros binários, os mais vários de meus vãos, mais pertos dos dedos do que das mãos.



Publicado no dia 30 de setembro de 2005 em
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segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

A Estética do Acaso


Perguntas, tantas juntas, povoam o caminho. Aninho-me à sombra da dúvida. Sonda-me, túmida, a interrogação. São as mesmas perguntas que estão há milênios rondando o espanto. Certezas são dadas, pregadas, vendidas e ventiladas; não comprovadas, no entanto.

A perplexidade de haver mundo lança o imperativo do sentido, categórico imperativo ao fundo do espanto. Quantas respostas, quantos cantos se erigem pela incognoscibilidade da questão. Há sentido, há destino, há direção? Ou a destinação de tudo é o acaso? Não se faz músicas com sons a esmo, nem mesmo com tons por descaso jogados ao vento, ao acaso, à ondulação. Mas pode ser que a beleza do mundo, o profundo mistério da vida, enfim, a resposta querida esteja contida, não numa explicação, mas num silêncio.

Silencio, pois o ruído pode produzir a audição, me propõem as veredas que sigo, as alamedas que percorro enquanto persigo alguma explicação. De um esbarrão pode brotar um beijo, desejo que de um engano, uma amizade, temo que de um silêncio, uma maldição. Toda ordem de inesperados observa nossas esquinas, nossas quinas e adentra nossa casa, nossos lados, nossos corações.

Que regente logra conduzir esta louca orquestra, quem logra cerzir um vestido de frestas de sentido e, ainda assim, pôr botões harmonia no dia, na vida, no universo, como quer faz canções e versos? Que ética seguem os deuses e, se for o caso, qual é a estética do acaso?


Publicado no dia 10 de setembro de 2005 em
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sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Apocalyptic strings

O primeiro anjo tocou a trombeta. Saraiva e fogo, misturados com sangue, foram lançados à terra; e queimou-se uma terça parte da terra, uma terça parte das árvores e toda erva verde. (Ap 7,7)


Culto apocalíptico, distorções e cellos enlouquecidos. Virtuoses, vultos, sensações de um som em conflito.

A revelação da prece desperta instintos e estertores. No vão das palavras, consinto as cores do som, dos acordes, dos quatro cavaleiros desta orquestra. Cada meio-tom arranca convulsões da destra, confissões da testa, da boca, louca em seu ricto de profanação.

A hiper-ventilação de meu cérebro desassossega. A carne não nega, é muita crueldade a profusão destas loucuras. É uma saudade escura, desejosa de um não-sei. Espinhos de rosa rasgam o que entreguei de mim: a alma. É um caos sem fim, sem calma, é toda uma selvagem fauna em mim. As paragens mais díspares se encontram no fim do mundo. Estes acordes ímpares encontram em mim solo fecundo.

Se eu reencarnasse, quereria ser um cello, eis a face de meu belo desejo metafísico, do sobejo abalo sísmico que esta plangência me traz. No meu livro da Revelação, jamais a ciência de sete trombetas. Sob o peso da emoção de um cometa, confesso, presto, que em meu final dos tempos me contento, me refestelo, com um quarteto de cellos.



Publicado no dia 19 de abril de 2004 em
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quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Encantador de Gaivotas

p/ Paula

O céu azul é muito importante na vida dos passarinhos
Porque os passarinhos precisam antes de belos ser eternos.
Eternos como uma fuga de Bach
Manuel de Barros — De Passarinhos


Quisera me espalhar na natureza, encontrar a beleza azul da imensidão; saber a gramática do chão e dos elementos, a matemática dos ventos e das mãos. Encantaria animais com a poesia que já não cantam mais os poetas hodiernos. Derramar-me-ia terno nos mares, nos ares, nos perfumes e nos lares somente para sorver a eternidade do verso, viver o meu anverso feito canção.

Penso que meus sussurros chegariam aos teus ouvidos, aos teus sentidos, com mais estrondo do que um trovão. Bastaria um ato de vontade para ofertar-lhe a potestade dum ramo de poesias bem olentes, colher flores que estariam bem contentes em comunicar-lhe a complexa criação. Bastaria um pouco de desejo para criar asas, sobrevoar casas, oceanos, o Tejo... e levar um céu azul (ou cinéreo) numa aquarela para com ele descortinar tua janela, levantar o véu de teus olhinhos (tão belos) para te mostrar, ao som de um violoncelo, a poética de um instante-passarinho.

Far-me-iam minhas asas, destarte, uma gaivota; mudaria de meu vôo a rota tendo o céu e o Tejo por estandarte, apenas para mirar tua face e sorver os poemas de teus olhos, brilhantes e plenos de mar (de rosas, e também de abrolhos). Far-me-iam meus lábios, destarte, brisa — o vento que se suaviza — ofertar-te-ia (com mais sinestesia que com arte) os beijos do final da tarde, quando o sol, sem alarde, vai-se pôr.

Se não tenho o sabor deste encantamento, acho que naquele mágico momento em que as asas da gaivota que sobrevoava o Tejo te comunicaram meu ser, pude conhecer-lhe o gosto. Minha poesia fez-se eterna na lembrança em que me fiz presente, na gaivota que te olhou o rosto e se fez permanente nas asas olentes destes versos, que misturaram para sempre os nossos (tão contíguos e descontínuos) universos.


Publicado no dia 30 de março de 2004 em
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sábado, 13 de dezembro de 2008

O Silêncio Ontogenético

"São as palavras mais silenciosas as que trazem a tempestade. Pensamentos que chegam com pés de pomba dirigem o mundo."
Friedrich Nietzsche -- Assim Falou Zaratustra


Em silêncio, cresce o homem ao redor do homem. Ele esquece que as coisas não somem: tornam-se. As coisas ornam-se de porvir.

A pequena gota anuncia a tempestade que há de vir. A suave brisa já divisa a qualidade do tufão que se insinua. A mulher nua sinaliza o turbilhão dos prazeres incontidos. Naturais, bemóis ou sustenidos, todos os tons, cientes de seus deveres, se fazem presentes nos sons que acalantam.

O que há no mundo? Profundos entes que cantam as suas metamorfoses. Um campo de múltiplas psicoses, últimas escleroses. No mundo há os rios que se transformam, os banhos que se renovam, perceptos que ganham forma, como os de Heráclito. O ser no mundo se apresenta apenas como uma efemeridade, uma singularidade pronta a tornar-se. Um processo aponta e faz o mundo, traz o fundo do sem fim, o estopim da poesia.

Uma sinfonia começa, às vezes, com uma breve e desconexa melodia. Um homem começa sua vida numa célula. Uma libélula lida primeiro com o seu estado larva. Os amores são banhados primeiro no véu da ansiedade. Uma longa saudade é sentida dia após dia.

O silêncio de um pensamento o espalha do momento concebido ao átimo átomo de um novo mundo construído ao fundo de nós.




Publicado no dia 13 de março de 2004 em
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sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Fogo andaluz

Verde que te quiero verde.
Verde vientos. Verde ramas.
El barco sobre la mar
y el caballo en la montaña.
Federico García Lorca — Romance Sonámbulo


Debulhada está minh'alma, como o trigo. Este som faz isto comigo, e perde a palma de minha mão no fogo andaluz. A guitarra seduz, plange a voz que canta, encanta a voz que chora, que lamenta o longe. Em algum onde, lá em Andaluzia, a poesia ainda vive como outrora.

Agora, não é preciso visitar Córdoba nem conhecer as ruas de Sevilha. Minha alma palmilha estas estradas que diviso, pela poesia de um tal Federico, pelo rico som daquelas paragens, daquelas miragens espanholas, daquelas castanholas tão ciganas, tão gitanas, tão sacramente profanas.

Festa pela fresta dos sentidos, esquecidos nos vagares destes campos. A viola pelos lares de meus cantos penetra o rubro sangue e a rubra rosa em mim. Ai, Sevilha, tudo que sei de tua lua prateada não aprendi nas tuas ruas, mas nas minhas. Meu pé não te caminha, mas o faz os meus sentidos, confundidos na lubricidade, na lascívia deste cello que imita a tua voz.

Na foz lânguida deste meu rio, forma-se o teu mar viril. A virilidade destes acordes, destas vidas, é contraste em minha tibieza. Somente nos encontramos na beleza de alguns versos, que eu só sei pressentir por carpir minha fraqueza e desejar a aurora deste outrora que nunca tive, mas vive latente a latejar sem fim, sem mim... que vive quente como uma boca carmesim.

Minha sensação é estranha, ao mirar o barco, que descreve um arco sobre o mar, e o cavalo na montanha. É como se a bailarina espanhola, na manhã pequenina e sem fim, se despisse pagã e eternamente p'ra mim.





Publicado no dia 27 de fevereiro de 2004 em
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terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Som e Luz

Eu sempre fui um menino
De natureza solitária
Que lia no mapa das coisas
O riso da letra divina
Em sua beleza primária
Moda — Zé Renato / Juca Filho

Urge crepitar a sensibilidade, para ver se surge algo além desta crepuscular surdez para tudo quanto há de beleza. Porque a crueza sem hora nem vez fez-se senhora, não quero crer no que me rodeia ("pare o mundo que eu quero descer" em paz!).

Tem horas que a mente esta cheia desta surdez. Surdez que leva à mudez da sensibilidade. Que faz com que aceitemos a facilidade da moral da sociedade "Big Brother", que exclui o incômodo e o diferente, mesmo sendo necessária a exclusão de gente, a desumana exclusão humana. Os holofotes da fama e os sacerdotes do capital elidem e iludem. Os sorrisos e a mixórdia estão em concórdia tácita, plácida e alienada com a morte da África (fenômenos anômalos da mesma sorte de lógica demagógica).

Mas todos os dias são ofertadas novas canções, novas porções de sensibilidade, de criatividade, de construção de mundo. Mas ainda é o moribundo frio de auroras que, ainda agora, predominantemente captamos pelas centenas de antenas de televisão que "vomitam música urbana".

O menino "que lia no mapa das coisas o riso da letra divina em sua beleza primária" sofre dentro de nós sua execução sumária na rudeza estética, estésica e ética do que lhe cerca. A recepção estática do lixo que lhe atiram à cara como se fossem dádivas do céu são lástimas, raras de serem percebidas. A vida, sem prazer, se anestesia atrás da miséria estéril, cinérea, do cemitério do sentir.

Ouso pedir: "ouçamos o silêncio para apreciarmos a música!" Sou propenso, quiçá por causa dos sonhos e sentires, à solidão de astros e montanhas, aos risonhos caminhos sem rastros e às estranhas lágrimas ante os tons que a vida produz. Todo homem, afinal, é som e é luz...


Sala São Paulo | OSESP


Publicado no dia 29 de janeiro de 2004 em
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segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Mar de Histórias
ou
A Biblioteca de Rosana

Para Rosana
A Biblioteca é uma esfera cujo centro cabal é qualquer hexágono e a circunferência é inacessível.
Jorge Luis Borges -- A Biblioteca de Babel


O globo prenuncia voltas ao mundo. Aprofundo-me na poesia, na prosa, nas dúzias de rosas que permeiam as páginas plurais destas ávidas estantes, que recheiam as imaginações com constantes pérolas.

Coloridas capas, capítulos, contos, etapas da história de Rosana, que preenche sua memória travando diálogos impertinentes com seus livros. São, sobretudo, belos. São singelos nos seus amores, nas suas dores, nos sabores e odores que silentes exalam. Rosana veste seus trajes de banho, despe-se deste mundo às vezes estranho e mergulha em seu mar de histórias.

Seus autores, seus amores, seus olores imiscuem-se. Na retina, fatigada de tanto pó estéril, formam-se regaladas imagens multicores, de um simbolismo etéreo e permanente em sua volatilidade. Ao longe, onde uma saudade anda perdida, nova vida já se ergue na potência da vontade.

Sua biblioteca é infinita, pois não se pode banhar duas vezes -- meu pensamento recita -- nas águas do mesmo livro. Sem permanência possível, sensível é a mudança, a dança dos sentires, dos devires, dos sentidos. Os caudalosos rios, torrentes de letras quentes, renovam suas águas e nossos olhos, abrolhos de nossa alma.

Há mil caminhos a serem percorridos, ouvidos na biblioteca. Além disso, nesta sagarana, cada livro lido a alma de Rosana disseca...






Publicado no dia 8 de fevereiro de 2004 em
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domingo, 7 de dezembro de 2008

Da Guerra entre Carneiros e Flores
ou
Da Vida

"Ce n'est pas important la guerre des moutons et des fleurs?"
Antoine de Saint-Exupéry -- Le Petit Prince



Quando a vida convida a celebrá-la, não usa meias palavras. A vida em nós não se cala nos nós de dentro de nós. Ela pulsa, irracional columba rubra de sangue que deslumbra com sua vital força.

A vida é hedônica, sardônica às vezes. Tem covinhas de sibarita e se irrita se escoa sem volúpia. A vida dos sentidos atordoa. Sua pulsação, seu coração é uma irracional pomba que tomba apenas para novamente levantar. E todos guardamos este animal cá dentro.

A racionalidade é um óbice, móbile imóvel, se no campo das profundas energias psíquicas. A mente logarítmica engendra, prevê e arquiteta. O homem, assim, acendra o seu desejo, na assepsia do apetite. Vejo na poesia dos santos a vontade calar o que assiste ao corpo, à vida. E tantos são os silêncios, que grita o porto pubiano da potência, da criação, da ciência dos quereres.

Não sei se o reino dos céus é das crianças, mas nas tranças de suas idéias esta o reino da carne. Seus sonhos são concretos e vívidos, nunca lívidos na renúncia -- denúncia de medonhos desprazeres. É natural a ciência de seus quereres, sempre castrada por palavras de ordem. Bravas bravatas seladas na mata de suas questões são mais importante que o fabrico de mil aviões de guerra.

Na terra, poucas são as batalhas que lhe interessam. O nonsense da razão não sabe da importância das travadas por doces, por ludicidade, por curiosidade ou pela vida. A relevância da guerra entre carneiros e flores só é percebida por quem vive o amor e o valor da vida.




Publicado no dia 24 de janeiro de 2004 em
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domingo, 27 de janeiro de 2008

Platonismo prático-sentimental

Certo dia, uma bailarina dançava a morte do toureiro. Era Lorca em suas pernas, em todo o seu corpo. Era o que havia de pleno, numa beleza que a tudo ofuscava.

Lembro-me ter me encantado, num deslumbramento de quem encara uma estrela de frente. Seus movimentos eram raios de luz que emanavam de seu corpo tão gracioso. Impossível não se apaixonar por aquela lúbrica figura.

Quisera eu ter asas para voar em direção àquela estrela, como o Ícaro mitológico fez em direção ao sol. Inda que eu caísse com a cera das asas fundidas em minha pele, morreria pelas grandes altitudes e pelas altas claridades. Pela alva claridade daqueles olhos sempre lépidos, lúbricos e lúdicos. Eu, nunca lúcido, esqueço a fronteira do que é real naqueles olhos...

Tornei-me um admirador, destes que vivem nas sombras. Como a luz não enxerga as trevas, fiz-me anônimo no admirar, num desejo sentido por dentro de tocar a luz daquela estrela. Ela se chama Jamile. Era mais bela do que a estrela Aldebarã.

Por acaso, tu és esta estrela?



Publicado no dia 18 de janeiro de 2004 em
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domingo, 30 de dezembro de 2007

Verso Buarque daqui ou de Hollanda

Não é que ele ainda consegue me surpreender! Devo aquiecer, quanto mais o conheço, mais me surpreendo. Às vezes, sequer compreendo: logo a mim, que achava que o conhecia tanto? Quanto?

Ele me surpreende até naquilo que dele eu já conheço, que não esqueço, no ainda não visto numa obra-prima de rimas já decifradas. É de uma supresa soprada num acalanto, num canto alegre ou triste, na palavra que existe plena em sua execução. A palavra dele feita canção, oração e prece me enriquece o ser de notas, de sons, de frotas de tons.

"Se após o salto mortal existe outra encarnação", quanta ilusão que há! Uma ilusão doce, poesia pura, melódica. Doçura e magia em acordes acordes a mim. Canta sobre todas as coisas, verseja e festeja o povo num atavismo. No seu sangue, o paroxismo do velho novo embate entre o prazer luxuriante e a ordem obcena, entre o viver brincante e a morte que encena a vida.

Num circo místico, a vida da atriz é divina comédia. É uma menina que risca as paredes com giz, que tem sede de danças no sétimo céu. Rompe-se o véu que separa fantasia e realidade, dramaturgia e veracidade. Toda verossimilhança confunde-se com a esperança de ela ser verdadeira. E não há outra maneira ou mais o que esperar dela.

"Seu navio carregado de ideais", apinhado de personagens principais, navega entre soluços que dobram tão iguais. Ele, que me faz subir "na montanha, não como anda um corpo, mas um sentimento", salmodia um coro na permuta dos santos. Nenhum intento é mais poético, nenhum momento é mais feliz. Eu, poeta menor, não em desejo, vejo que "para sempre é sempre por um triz". De meu vôo melhor (eu também tenho asas), sempre encontro o chão, pois nenhum verso buarque me encara e se casa no que escrevo. Só no que sinto. Não minto: eu amo Chico Buarque.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

Danza de las espadas




E, inda tonto do que houvera,
À cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra a hera,
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia.
Fernando Pessoa - Eros e Psique






Cantam as espadas e a viola. Viola-se um corpo. Fadas dançam para um corvo. Augúrios e mistérios, espúrios perjúrios, etéreos doentes, todos se tocam. Atrás da pedra se pressente o ser. Evocam um deus longínquo em língua nunca falada. Dançam as espadas...

Vinte e cinco sabeus descem a montanha. Estranha a sensação do que se pode. Respira-se magia e elegia, poesia e agonia. O que erode além dos muros é o peito da donzela. Bruxos trajando os escuros cortam em dois o tronco virgem. Bela é a música que a tudo preside. O sangue elide das veias a vida venal.

Cheias de lidas, as mãos e o punhal se prendem ao rito. Um grito, ao longe, denuncia o Sabá. Correm de lá todos os bruxos, deixando arder ao fogo a carne branca da donzela. Meu sangue regela. Acordo exangue do pesadelo. Meu refestelo dura poucos segundos. Eu me inundo ouvindo o cutelo soar. Congelo ao lembrar que lâminas traspassarão a fauna lânguida de minha alma. Visto a mortalha assim: retalha-me a dança das espadas em mim.

Meu pânico é ser a donzela que vai arder no próximo conciliábulo das trevas. Acho que pressentia que eu mesmo era, inda tonto do que houvera, a donzela que ardia...


Publicado no dia 10 de janeiro de 2004 em http://www.icaroberanger.blogger.com.br/.

sábado, 22 de dezembro de 2007

So... Happy Christmas

Shoppings centers abarrotados: Crianças e adultos, atropelando-se e atropelados, fazem manha pelo presente que não ganham. Cartões, que cobram resposta, com a seguinte frase posta: "Feliz Papai Noel". E o bom velhinho, insumo da cor duma lata de Coca-Cola, alavanca o consumo.

Meu passo estanca. Do alto da descrença adquirida na mania de enxergar símbolos, salta o simplório questionamento: qual o intento dos Evangelhos que narram o nascimento de Cristo? E me visto desta questão aqui, qual fora um moralista, não para passar em revista a obrigação com o deus que se fez homem — tais questões, ao incrédulo, não se consomem nem se colocam —, mas apenas para olhar como se deslocam os significados das coisas sobre os significantes materiais, e para descobrir como são insignificantes todas as eternidades inventadas, todas as verdades forjadas na peia dos sentidos escravizados, na ceia dos meninos pelados no meio-fio, meio frio de deserto e solidão, meio fogo de um medo que vive perto do caixão, do valão comum dos corpos quase mortos esquecidos, de mendigos e indigentes.

Faustas festas em tantas casas, tantas brasas que aquecem frios, tudo isso em contraste com o estio de lágrimas nas páginas daquele papelão com que se cobrem os homens que dormem no chão. Não se pode ter muita esperança, muita confiança que a bondade há de se estender para além desta data. O vinho que esquenta o coração também prepara o crime que a televisão noticia. Espetáculos lúgubres televistos por meus olhos são os tentáculos de minha percepção que cingem o mundo com suas misérias, com suas matérias sensacionais nos jornais assépticos que, por serem eletrônicos, não sujam as mãos.

No peito, a sensação de que algo deve ser feito. Nas mãos, a concretude da impotência do querer. A consciência, acho que se ilude, brada por ação. A realidade desagrada a razão e aconselha calma. Os traumas de muitas almas podem esperar o fim da festa — atesta Papai Noel, o sacerdote da inação...


Publicado no dia 27 de dezembro de 2003 em
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Este sou eu

Sou dado a sonhos altívolos. Em meu nome, trago as asas de meus mais profundos desejos de liberdade. Deslumbro-me com a claridade do sol e a altura do vôo. Afogado na aspiração de ser alado como um deus, sou pagão desde a origem dedálea de meu nome.

Sou afeiçoado a sons altíssonos. Em mim, trago ambições cerzidas de intensas ânsias elevadas. Descubro-me vário sob a luz lunar e o sublime êxtase de um acorde. Acossado no desejo de ser como Orpheu, sou aedo desde a origem labiríntica do que é meu.

Ícaro sou eu, homem feito das fibras intrincadas do desejo. Recuso toda advertência que castra o vôo, mesmo pagando com a morte a ousadia. Digo isso porque há muitos tipos de mortes em vida, muitos preços por ousar viver. A vontade de potência no mais alto grau desejante jamais é lassa, mesmo quando lhe grassa a lassidão. E eu só vivo da vontade de potência.

Este sou eu: Ateu, epicureu, nunca filisteu. Aedo alado, desejo flagrado e deflagrado. Sim, este sou eu...