domingo, 30 de dezembro de 2007

Verso Buarque daqui ou de Hollanda

Não é que ele ainda consegue me surpreender! Devo aquiecer, quanto mais o conheço, mais me surpreendo. Às vezes, sequer compreendo: logo a mim, que achava que o conhecia tanto? Quanto?

Ele me surpreende até naquilo que dele eu já conheço, que não esqueço, no ainda não visto numa obra-prima de rimas já decifradas. É de uma supresa soprada num acalanto, num canto alegre ou triste, na palavra que existe plena em sua execução. A palavra dele feita canção, oração e prece me enriquece o ser de notas, de sons, de frotas de tons.

"Se após o salto mortal existe outra encarnação", quanta ilusão que há! Uma ilusão doce, poesia pura, melódica. Doçura e magia em acordes acordes a mim. Canta sobre todas as coisas, verseja e festeja o povo num atavismo. No seu sangue, o paroxismo do velho novo embate entre o prazer luxuriante e a ordem obcena, entre o viver brincante e a morte que encena a vida.

Num circo místico, a vida da atriz é divina comédia. É uma menina que risca as paredes com giz, que tem sede de danças no sétimo céu. Rompe-se o véu que separa fantasia e realidade, dramaturgia e veracidade. Toda verossimilhança confunde-se com a esperança de ela ser verdadeira. E não há outra maneira ou mais o que esperar dela.

"Seu navio carregado de ideais", apinhado de personagens principais, navega entre soluços que dobram tão iguais. Ele, que me faz subir "na montanha, não como anda um corpo, mas um sentimento", salmodia um coro na permuta dos santos. Nenhum intento é mais poético, nenhum momento é mais feliz. Eu, poeta menor, não em desejo, vejo que "para sempre é sempre por um triz". De meu vôo melhor (eu também tenho asas), sempre encontro o chão, pois nenhum verso buarque me encara e se casa no que escrevo. Só no que sinto. Não minto: eu amo Chico Buarque.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

Danza de las espadas




E, inda tonto do que houvera,
À cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra a hera,
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia.
Fernando Pessoa - Eros e Psique






Cantam as espadas e a viola. Viola-se um corpo. Fadas dançam para um corvo. Augúrios e mistérios, espúrios perjúrios, etéreos doentes, todos se tocam. Atrás da pedra se pressente o ser. Evocam um deus longínquo em língua nunca falada. Dançam as espadas...

Vinte e cinco sabeus descem a montanha. Estranha a sensação do que se pode. Respira-se magia e elegia, poesia e agonia. O que erode além dos muros é o peito da donzela. Bruxos trajando os escuros cortam em dois o tronco virgem. Bela é a música que a tudo preside. O sangue elide das veias a vida venal.

Cheias de lidas, as mãos e o punhal se prendem ao rito. Um grito, ao longe, denuncia o Sabá. Correm de lá todos os bruxos, deixando arder ao fogo a carne branca da donzela. Meu sangue regela. Acordo exangue do pesadelo. Meu refestelo dura poucos segundos. Eu me inundo ouvindo o cutelo soar. Congelo ao lembrar que lâminas traspassarão a fauna lânguida de minha alma. Visto a mortalha assim: retalha-me a dança das espadas em mim.

Meu pânico é ser a donzela que vai arder no próximo conciliábulo das trevas. Acho que pressentia que eu mesmo era, inda tonto do que houvera, a donzela que ardia...


Publicado no dia 10 de janeiro de 2004 em http://www.icaroberanger.blogger.com.br/.

sábado, 22 de dezembro de 2007

So... Happy Christmas

Shoppings centers abarrotados: Crianças e adultos, atropelando-se e atropelados, fazem manha pelo presente que não ganham. Cartões, que cobram resposta, com a seguinte frase posta: "Feliz Papai Noel". E o bom velhinho, insumo da cor duma lata de Coca-Cola, alavanca o consumo.

Meu passo estanca. Do alto da descrença adquirida na mania de enxergar símbolos, salta o simplório questionamento: qual o intento dos Evangelhos que narram o nascimento de Cristo? E me visto desta questão aqui, qual fora um moralista, não para passar em revista a obrigação com o deus que se fez homem — tais questões, ao incrédulo, não se consomem nem se colocam —, mas apenas para olhar como se deslocam os significados das coisas sobre os significantes materiais, e para descobrir como são insignificantes todas as eternidades inventadas, todas as verdades forjadas na peia dos sentidos escravizados, na ceia dos meninos pelados no meio-fio, meio frio de deserto e solidão, meio fogo de um medo que vive perto do caixão, do valão comum dos corpos quase mortos esquecidos, de mendigos e indigentes.

Faustas festas em tantas casas, tantas brasas que aquecem frios, tudo isso em contraste com o estio de lágrimas nas páginas daquele papelão com que se cobrem os homens que dormem no chão. Não se pode ter muita esperança, muita confiança que a bondade há de se estender para além desta data. O vinho que esquenta o coração também prepara o crime que a televisão noticia. Espetáculos lúgubres televistos por meus olhos são os tentáculos de minha percepção que cingem o mundo com suas misérias, com suas matérias sensacionais nos jornais assépticos que, por serem eletrônicos, não sujam as mãos.

No peito, a sensação de que algo deve ser feito. Nas mãos, a concretude da impotência do querer. A consciência, acho que se ilude, brada por ação. A realidade desagrada a razão e aconselha calma. Os traumas de muitas almas podem esperar o fim da festa — atesta Papai Noel, o sacerdote da inação...


Publicado no dia 27 de dezembro de 2003 em
http://www.icaroberanger.blogger.com.br/.

Este sou eu

Sou dado a sonhos altívolos. Em meu nome, trago as asas de meus mais profundos desejos de liberdade. Deslumbro-me com a claridade do sol e a altura do vôo. Afogado na aspiração de ser alado como um deus, sou pagão desde a origem dedálea de meu nome.

Sou afeiçoado a sons altíssonos. Em mim, trago ambições cerzidas de intensas ânsias elevadas. Descubro-me vário sob a luz lunar e o sublime êxtase de um acorde. Acossado no desejo de ser como Orpheu, sou aedo desde a origem labiríntica do que é meu.

Ícaro sou eu, homem feito das fibras intrincadas do desejo. Recuso toda advertência que castra o vôo, mesmo pagando com a morte a ousadia. Digo isso porque há muitos tipos de mortes em vida, muitos preços por ousar viver. A vontade de potência no mais alto grau desejante jamais é lassa, mesmo quando lhe grassa a lassidão. E eu só vivo da vontade de potência.

Este sou eu: Ateu, epicureu, nunca filisteu. Aedo alado, desejo flagrado e deflagrado. Sim, este sou eu...